quinta-feira, 31 de maio de 2012

Trinta dias não é nada, é só um punhado de tempo; é tudo, é só um punhado de bem pouco.


Trinta dias é o tempo que corre entre meus dedos e a flor com a qual enfeito teus cabelos. Trinta dias é o tempo que espero por um telefonema e o relógio só conta um dia todo. Um mês, trinta dias, é o tempo que não se conta, quando se espera. Ah, tempo!, graças tantas oferecidas, pois não mais me aflige o tempo do aguardo, pois aprendi com você, tempo, a gozar dentro deste espaço tão alto, tão baixo, tão rápido, tão curto e pouco... danço tua vulnerabilidade implacável.

Na prisão, no hospital, no caminho de quem se perdeu, o tempo não passa, materializa-se na dor do momento. Mas, há um tempo diferente, aquele que não se conta por ser ele dono de si mesmo e ao mesmo tempo amigo arteiro. Ele caminha em linha reta, mas lhe dá a sensação de que bem pouco ou bastante, com lágrimas ou risos, em dias claros de sol a pino ou em chuva que não para e mais um respirar teu que pode ser trinta dias respirando, e, você alcançará a estrela mais brilhante, pouco importando se pra sempre ou só agora. Ele lhe dará tua flor, e você sorrirá feliz, antes e durante, mas você precisa esperar.

Esperar, esperar, esperar. Aprendi. Não mais me doem as juntas invisíveis do corpo e da alma, não caminham líquidos venenosos pelas minhas veias, não perco o rumo, não me desespero, não tenho ânsias de grito e nem de clausura, posso contar um dia após o outro, em espera, na espera. E posso fazer festa com minhas aflições fugidias. Eu posso ser assim porque fui abrindo os braços devagarinho, quase que imperceptivelmente até eu abraçar-me toda. Quando fechei os braços em mim, em meu corpo maltratado por minhas incertezas e por golpes alheios, eu me vi, me conheci, reconheci. Sorri para mim mesma, assim como faço hoje ao contar regressivamente trinta dias.

Trinta dias não é nada, é só um punhado de tempo; é tudo, é só um punhado de bem pouco. É o tempo que eu poderia desprender absorvendo teus olhos nos meus, tocar a ponta de teus dedos, te puxar para mim, tirar tuas vestes - ah, eu gastaria trinta dias...; mergulhar meu corpo no teu e nadar, nadar, nadar até morrer na praia. Eu morreria trinta vezes trinta na beira da praia, sorrindo, olhando o mundo e toda a sua gente, gentilmente.

Cem anos foi muito. Três anos, bastante. Trinta dias é o tempo que existe entre os dois.


por Suzana Guimarães 

quinta-feira, 24 de maio de 2012

QUAL O TEU MEDO?



Adriana sofre um longo tempo antes de viajar de avião. Na viagem, ela não ingere líquidos. Adriana morre de sede e vontade. O cara ao lado dela derrama coca-cola pela boca. No avião, ela não usa o banheiro, ela tem medo de fazer xixi no banheiro apertado da aeronave, mesmo que a viagem dure quinze horas ou mais. Miguel é engenheiro. Ele não assina documentos em frente aos outros, e, por isso, evita reuniões. Sandra não come em público. Carlos deixou de visitar o melhor amigo no hospital, em seus últimos instantes de vida, porque não entra em elevador. Há quem tenha medo de aranhas, baratas e eletrodomésticos.

E você? Qual o teu medo? Não se encabule se você esconde algum, mas também não ria, se você for a própria coragem em pessoa. A espécie humana só existe porque teve e tem medo. Foi o medo que nos preservou.

Adriana é uma profissional realizada, tem marido e amigos. O seu medo por avião não afeta a sua vida. Miguel é um dos sócios de uma empresa de engenharia, deixar para assinar os documentos em casa ou sozinho em seu escritório não prejudica em nada a sua profissão. Sandra deixou todos os seus familiares e amigos cientes de que ela está sempre de dieta e, em casa, come sem mastigar, com voracidade. Carlos perdeu várias chances de ascensão profissional e até o amor da sua vida porque ele não entra em elevadores. Carlos evita ao máximo, e, quando não consegue isso, sofre antes, durante e depois do passeio na caixa quadrada. Sofre depois, de vergonha de si mesmo.

Evitar o contato com insetos, bichos, eletrodomésticos e esportes de risco é fácil e não muda o destino de ninguém. Evitar o medo de ter medo é penoso.

Carlos sente medo só de pensar em estar num elevador. Por isso, sua vida é toda calculada em cima disso. Ele faz previsões, investiga antes, dispensa com facilidade, não conta para ninguém porque se sente ridículo por sentir medo de algo tão corriqueiro, que todo mundo faz. Carlos, em algumas ocasiões, se prepara antes bebendo vodca, porque a bebida, além de acalmar, não tem cheiro. Ele carrega uma garrafinha no bolso do paletó. Mas, pouco adianta. O medo lhe alcança bem cedo, ele sente calor excessivo, treme as mãos, a sua mente fica perturbada, confusa, ele não consegue conectar os pensamentos. Ele só pensa em fugir ou terminar logo com aquilo. Carlos é de bem com a vida, seria plenamente de bem se não existissem elevadores. Ele tem um bom emprego, amigos, é um cara socialmente muito bem visto e querido. Ele namora. Ele tem planos para o futuro, mas tudo precisa estar abaixo da altura de quatro andares. Às vezes, ele sobe todas as escadas de um prédio de onze andares, mas nem sempre isso é possível, e há muitos arranha-céus na cidade onde vive.

Ele já pensou em mudar de endereço, morar na roça ou numa cidade bem pequena, mas ele não pode, tem medo de mudar seu 'status quo'. Ele já pensou em procurar o seu grande amor, contar tudo a ela, mas ele não pode, ele não consegue. Carlos sofre em silêncio há uma década. Sabe ao certo quando tudo começou, o primeiro dia de horror, de medo, quando se sentiu desconfortável e tonto dentro de um elevador que subia muito rápido e, de repente, parou e ficou entravado entre dois andares. Quando o socorro chegou, as pessoas presas pularam para fora, com ajuda do porteiro do prédio e do técnico, chamado para o conserto. Carlos não quis pular, sentia-se tonto, tudo rodava e ânsias de vômito o deixavam envergonhado. Após o ocorrido, Carlos seguiu em frente, chegou a se esquecer do mal sucedido, até que num dia comum, sem explicações possíveis, dentro de um elevador que subia para o vigésimo quinto andar, ele começou a sentir medo.

Carlos evitava elevadores, depois, passou a evitar aviões e o medo, tão pequeno no começo, agigantou-se. Hoje, ele tem seu próprio e tímido negócio, largou seu trabalho numa grande empresa multinacional, tem uma namorada que não lhe atrai muito, mas nunca faz perguntas e mora no primeiro andar de um prédio de três níveis. Ele deixou seus sonhos num canto de sua vida, faz de tudo para esquecer e se sentir bem, mas ele não é a Adriana, nem o Miguel e sequer a Sandra. Ele é ele próprio, igual aos demais, mas ele tem um problema, uma doença, e ele precisa de ajuda, mas, para Carlos, medo é apenas motivo de riso ou desprezo.


por Suzana Guimarães



Nota: texto a ser publicado na Revista MOSTRA PLURAL, em 30 de maio de 2012. Por erro meu, publiquei esse texto no Facebook, hoje. Nada mais podendo fazer a respeito, fica aqui também registrado.

domingo, 20 de maio de 2012

"AMANHÃ FOI CANCELADO POR FALTA DE INTERESSE" (frase escrita numa caneca)



Parei o carro no estacionamento quase vazio. Dia quente. Ventava bastante e as árvores à minha direita faziam o mesmo barulho de décadas atrás, embora fossem outras e outro também o pássaro que estardalhava, equilibrando-se nos galhos que se erguiam para depois descer... lá não tem corvos. Eu esperava meu filho e pensava em tudo que não esperei.

Foi o som que me levou para trás, em esforço mínimo...

Houve um tempo em que o sino da igreja badalava as seis horas marianas e a cidade parecia parar enquanto a voz do padre reverberava nos céus, recitando a ave-maria. Isso era todo dia. Por mais que eu estivesse desatenta, eu parava para perceber porque aquilo tudo dominava o lugar, enclausurado pelas montanhas.

Houve um tempo em que, enquanto eu escovava os dentes, podia perceber a toalha de rosto puída, o quanto ainda tinha de perfume no vidro em cima do balcão da pia, o tapete se desfazendo no chão tantas vezes admirado sem ser visto.

Houve um tempo em que eu tinha tempo para visitar as amigas da minha mãe, com ela. Uma delas era salgadeira. Quando íamos lá, o cheiro dos salgados assando nos fornos nos ganhava já no portão de entrada. Não tocávamos campainha. Percorríamos um corredor estreito, lateral aos fundos da casa, e chegávamos à uma cozinha que havia se estendido até o quintal. Tabuleiros pretos de uso empilhados nos cantos, e a mão de dona N., enrolada em panos de prato, segurando um tabuleiro, estendia-se para nós, oferecendo-nos um tira-gosto. Mas, aquilo na realidade era o gosto inteiro, era a minha festa, nunca precisei sequer ser convidada para algumas delas.

Houve um tempo em que meu pai fazia boca, nariz e olhos em abóboras e as deixava iluminadas em cima do muro da casa do vizinho. Houve um tempo em que eu cantava o Chico exaustivamente e sequer imaginava que o meu cavalo só iria falar Inglês...

Tempo, tempo, tempo... Para onde você foi? Onde está? Quando me deixou?

Eu podia desembaralhar as linhas soltas dos novelos de lã para a minha avó. Eu podia vigiar os passos de bêbados nas madrugadas, pendurada na janela do sobrado antigo; alheia a ele, ao tempo, mas em perfeita comunhão. Eu podia admirar os bichos-preguiça cochilando nas árvores da praça principal. Parava para ouvir sapo coaxar, subia ladeiras para ver a cidade de cima, enfiava meus pés nas águas escuras das enchentes.

Houve um tempo em que eu segurava a vida e nem sabia.

Por mim, o tempo poderia parar agora, mas eu não sei como se faz isso, não tenho a voz daquele padre anunciando a hora mariana, não sei mais apreciar detalhes, eu apenas finjo que olho, que toco, que engulo. Quero sair da pista de corrida, quero sorver este silêncio que me tomou de súbito.

O pássaro nada sabe de mim. Nem o tempo. Nem ninguém.

Faz calor, faz frio, eu vejo que o homem que passa ao largo de mim está cansado, eu vejo rostos deformados de esforços. As árvores tão altas e alheias balançam-se de acordo com o vento... eu deveria fazer o mesmo!


Por Suzana Guimarães

quarta-feira, 16 de maio de 2012

ESTENDO O MEU BRAÇO E AINDA POSSO TOCAR O MEU AMOR.

The begining of time.by *juliadavis


Eu tenho certeza de uma coisa nesta vida: quando estamos totalmente apaixonados, envolvidos, não sentimos vazio e nem falta de nada. O outro nos completa por inteiro. Mas, quando o tempo juntos é grande, acredito que a relação se desgasta... daí, a gente tem que pesar, ver o que vale a pena, continuar a união ou terminá-la.

Na verdade, não é o tempo que atrapalha - tempo não existe, é invenção nossa -  o desgaste pode chegar com dez anos de relacionamento ou com um ano, o que conta mesmo é o tanto que o outro mudou. Se um muda e o outro, não, é preciso analisar se essa mudança está próxima, como se você pudesse medir a distância com teu braço... vocês então estarão em sintonia ainda. O mesmo para quando os dois mudam. Agora, quando a mudança é só de um ou mesmo de ambos, mas vocês ficaram muito longe um do outro em seus ideais, sonhos, conceitos e interesses, um tanto tão enorme que mal conseguem se enxergar (nem dá mais para se falar em casal), aí, é hora de pular para perto ou chamar o outro para fazer isso ou se separarem.

Por Suzana Guimarães

terça-feira, 8 de maio de 2012

Quando não se pode explicar, mas incomoda.




Há um excesso dentro de mim, suficiente para me satisfazer como gente e suficiente também, em contraponto, para esgotar-me. Como se o próximo passo fosse suplício, maratona em seus últimos segundos, e a palavra cansa durante sua pronúncia, bem no meio dela, impossível então falar a frase toda.

Às vezes, fujo desse excesso, às vezes, sinto-me especial por tê-lo, por sê-lo, por me diferenciar de uma gente que tolera o quase nada. Mas, também grita uma pergunta: o que é que eu venho querendo, já que o excesso anda dando lugar à uma vontade tamanha, bem maior que eu?

Revirei esse sentir, não se trata de ansiedade, não é tédio, não é sequer tristeza. Aprendi que a ansiedade lhe dá tudo, menos o teu objetivo - e, por isso, eu a evito; que tédio é irmão do medo e que é possível controlá-los e compreendi, após longo tempo, que tristeza tem razão de ser, é fruto de alguma perda ou dor. Refiro-me a algo que está berrando nos meus ouvidos surdos, que ordena, que me cutuca, que por vezes parece já estar impaciente e eu não sei o que é. Acostumei-me faz tempo em viver o dia de hoje, e planejar até amanhã somente. É claro que não sou tola e estoquei o que caberia devidamente num canto para ser vivido no momento certo, num futuro ainda distante, só quando a ocasião nascer, mas o cotidiano com suas singelezas não caminha até o final da semana. Eu vivo o agora sem traumas, sem paúras.

Há um excesso dentro de mim, parece que alguém grita junto com ele, me puxa, diz todo dia que poderia ser hoje, e eu continuo na brincadeira de ser dispersiva. Não escuto vozes, não sou esquizofrênica, não vejo e nem converso com pessoas que não existem, mas parece que alguém recita um poema, ou repete um ditado, confere uma receita, parece que alguém faz ladainhas com meu nome, parece repeti-lo, repeti-lo, até que o som se perde em lembranças vividas ou delírios de um sonho. Não sei.

Talvez, quem sabe, a palavra esteja pulando da boca, as mãos da alma esperando abertas, aflitas, meus olhos tentando enxergar no escuro do silêncio que ninguém vê e minha boca quer gritar bem alto dentro dele... Talvez, seja alguma verdade contra à qual luto desprovida de armas precisas, talvez seja o rapaz da biblioteca, que todo dia diz um livro inteiro para mim, e eu não consigo ouvir. Talvez, ele nem diga, e eu inventei, porque inventar é cismar e eu cismo em viver. E viver para mim é estar amena ou dilacerada em emoções. Não sei viver como se esperasse o próximo trem parar na estação porque o motorista não viu meu aceno, tímido ou em estardalhaço, mas feito.

Por Suzana Guimarães

 

domingo, 6 de maio de 2012

CARTA DE ENCONTRO, NÃO NOS CABE DESPEDIDAS


(Suzana Guimarães - arquivo pessoal)



Los Angeles, 6 de maio de 2012.
 



Querido,

Maio me chama, assim como você. Maio pede as minhas madrugadas, você pede que eu não vá. Não, esta não é uma carta de despedida, é de encontro.

Aquele avião ainda não alcançou os céus, os céus de maio são para serem voados com pés em terra. Eu ainda não invadi o aeroporto com minhas bagagens, não entrei no táxi amarelo, não fechei a porta de casa, nem arrumei as malas, indecisa por não saber organizá-las... eu ainda não lhe disse adeus, até breve, I`ll see you, bye, good bye... eu ainda estou aqui. A noite correu solta sem minhas rédeas e a madrugada chegou antes mesmo que eu tomasse pelo menos um chá, um bom e demorado banho quente, revesse o dia, amansasse meus desejos. E aqui estou, porque é maio. Porque penso em teus olhos doces, parados, despedindo-se. Como você se despede de mim! Quantas vezes? Quantos adeus? Há quanto tempo? Não pense, não pense, não tente desvendar nosso encontro, ele é sagrado, imune a nós mesmos.

Maio pede cartas, pede caminhadas, passos lado a lado, pede riso, muito riso e chão. E quantas voltas eu daria neste mundo para nunca mais me despedir? Você diz que parto em caminhada leve, eu sei, uma única viagem, dois destinos distintos; de um lado, quem vai, parece que sempre vai mais leve, do outro lado, quem fica e carrega o peso do vazio. Ah, como pesa o vazio, teus olhos dizem e também o silêncio do último dia, que grita, mudo! A ausência mais presente que o mais presente e barulhento dos convidados de uma grande festa. Um corpo que você vê passar, mas não passa. Um cheiro que você sente em golpes de vento, mas que do nada sai, umas vozes e um certo riso que se assemelham, mas que não são.

Eu pareço leve? Como, se levo você comigo? Digo que meu adeus é breve, você diz, longo. Como, se cheguei ao fim da longa jornada?  Acabo de chegar, deitar o peso no chão e pousar meus olhos nos teus, gruta onde eu poderia adormecer, pela segurança da certeza.

Essa não é uma carta de despedida, é carta de confissão, porque é maio, porque me perco em certas madrugadas, porque ando vendo teus olhos gravando na memória meus passos, meus atos, meus vãos, lugares onde guardo você, silenciosamente, lugares perdidos, cidades proibidas... um dia, quem sabe, abro a porta desses sítios onde você reina, senhor e dono absoluto da senha, da palavra principal. Diga, diga o que lhe pende dos olhos e eu lhe direi que sim.

Beijos,

Suzana Guimarães

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Coça, eu sei, e você é incapaz de lidar com isso


Você é o próprio advogado do Diabo. Tua sanha é caçar os defeitos ou as idiossincrasias alheios, tudo o que você não aceita, não gosta, ou mesmo sequer tem uma opinião precisa e convicta formada a respeito. Isso é a coceira que lhe dá no corpo, aquela que passa pela tua cabeça quase o dia todo, e, por não conseguir coçar, você tenta provocar o outro. Você faz picuinha, atiça de longe; gente igual a você foge do confronto, do cara a cara. Você procura no outro, o defeito, o feio, o que parece convencer os próximos e lhe garante audiência. Você não olha teu umbigo, porque você não pode. Você tem bastante, conquistou gente e algumas coisas, mas ainda há algo, a coceira, que aparece e coça, coça em cantos que você não pode e não consegue alcançar sozinho. Daí, você pega um instrumento qualquer, um computador, um telefone, e ataca. Sim, é um ataque. O mundo vem em bolhas de sabão para você e você, delirante, perde o rumo e o prumo tentando estourar todas, mas é muito, e, então, às vezes, você se recolhe para descansar. Até que a coceira volte.

Por Suzana Guimarães